sexta-feira, 10 de março de 2017

Fechamento de escolas rurais obriga crianças a passar mais tempo na estrada que em aula

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Todos os dias, crianças com idades entre 5 e 8 anos saem de casa às 4 e meia da manhã para chegar a tempo na aula, que começa às 7h. Se estiver chovendo, têm de caminhar dois quilômetros até o ônibus, que não consegue ir até elas por causa da lama no caminho. E quando o tempo está seco, elas ficam expostas a doenças respiratórias causadas pela poeira na estrada. Quem conta sobre essa rotina difícil, comum para crianças e adolescentes filhos de trabalhadores rurais da região de São Carlos – uma das mais importantes cidades do interior paulista, região considerada das mais prósperas do meio rural brasileiro – , é o professor Luiz Bezerra Neto, do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação no Campo (Gepec), ele conhece de perto essa realidade.
"E olha que nem estou me referindo à situação no Norte e Nordeste, onde tudo é sabidamente mais precário. Falo de casos que acompanhei no município onde trabalho, no interior do estado mais rico da federação, em que crianças ficam cinco horas dentro do transporte escolar, e apenas quatro em sala de aula. Em que condições vão chegar em casa?", questiona. 
Outra dificuldade imposta aos pequenos alunos de São Carlos, como aponta o professor, é no retorno, após as 11h, quando a aula termina. Como nem todas estudam no mesmo lugar e são atendidas por um único ônibus, umas têm de esperar mais de uma hora pela chegada das outras, até que o grupo seja unido novamente e possa seguir a viagem de volta. Se não houver problema com o ônibus – geralmente são velhos e mal conservados – todas chegam em casa bem mais tarde, cansadas e com lição para fazer. Sobra pouco tempo para o convívio com a família ou mesmo para brincar. Para quem sai da cama antes de o sol raiar, o sono não demora e mais um dia termina.
Pelos dados do Gepec, de 2002 para cá foram fechadas mais de 30 mil escolas rurais no país, levando muito mais crianças em todo o país a viver essa dura realidade, marcada por viagens arriscadas em estradas e veículos mal conservados, sem a presença de um monitor para cuidar da segurança, especialmente das menores, durante o trajeto, sem alimentação adequada, com poucas horas de sono e o consequente cansaço. Fora os outros prejuízos. "Sem escola perto de casa, que foi fechada, a tendência é o aluno abandonar os estudos e ficar em desvantagem de oportunidades no campo ou na cidade", diz Luiz Bezerra. 
Para ele, a preocupação de muitos governantes não é a criança, o estudante. "A escola não tem ido à criança. Tem sido o contrário. A criança é que tem ido à escola. Um governante que se preocupa com a educação da população deveria estar levando a escola até ela", afirma.
Em geral, o argumento dos gestores para fechar escolas é sempre o mesmo: corte de despesas. E para não contratar professores e merendeiras, preferem fechar a escola e contratar transporte escolar. A opção é péssima para os trabalhadores e seus filhos também porque dificulta o controle social sobre o pagamento da despesa.
"Ao contrário da manutenção de uma escola, mais fácil de ser fiscalizada pela comunidade, o transporte é de difícil controle. A comunidade não tem acesso, por exemplo, à quilometragem percorrida pelos ônibus em busca dos alunos. Por isso muito governante – não todos – opta pela oferta desse serviço. Não temos como provar, mas sabemos que isso possibilita o desvio de verbas", aponta o professor da UFSCar.

Insegurança

No litoral sul da Bahia, no município de Prado, há sete assentamentos. A maioria das 538 famílias que se dedicam à agricultura de subsistência, tem filhos em idade escolar. No entanto, na região já foram fechadas seis escolas nos últimos anos. Para muitos pais, a única alternativa é mandar as crianças para o município vizinho de Alcobaça, mesmo contra a vontade.
O dirigente regional do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) Carlos Roberto da Silva, o Beto, conta que há inúmeros motivos de preocupação. "Os pais ficam trabalhando na roça e não sabem o que os filhos estão fazendo na outra cidade. Se tiver aula vaga, quem garante que eles não vão para a praia? Defendemos que cada assentamento tenha sua própria escola, até porque a lei garante que a criança estude perto de casa", diz. 
Outro temor, conforme o dirigente do MST, é em relação à segurança das crianças no transporte escolar, sem a presença de um monitor. E lembra que os mais velhos, em idade de cursar o ensino médio, só podem estudar à noite, na cidade. "Muitos deixam de estudar porque chegam em casa à 1 hora da manhã e precisam levantar cedo."
O MST defende uma escola por assentamento porque, além das necessidades pedagógicas comuns, há necessidades específicas de cada um deles. "Precisamos melhorar a qualidade da educação no campo, e não piorar, fechando as poucas escolas que temos e mandando as crianças estudar tão longe. O descaso é tão grande que até mesmo nas escolas que construímos com nossos próprios recursos faltam educadores. A prefeita não foi capaz de contratar educador", diz o líder do movimento.
No início de fevereiro, os assentados se organizaram em comissão de pais e alunos para pressionar a prefeita de Prado, Mayra Brito (PP), a investir nas escolas em vez de fechá-las. Como a gestora não os recebeu, a comunidade ocupou a prefeitura para forçar o diálogo, que não ocorreu. Em vez disso, a prefeita obteve liminar na Justiça e a Polícia Militar fez a desocupação do local.  

Sucateamento

Quando não são fechadas, as escolas do campo são sucateadas, agravando a situação de falta de infraestrutura. Há unidades sem professores, merendeira, carteiras, materiais e muitas onde falta até água para beber – como acontece no sul da Bahia, por exemplo. E nas menores, com poucos alunos, é muito comum a chamada classe multisseriada. Nela, alunos de idades diferentes, em séries diferentes, assistem aula com o mesmo professor. 
O sistema até poderia funcionar, caso houvesse integração entre as crianças e investimento na formação docente e em recursos pedagógicos. O problema é que, ao dividir as quatro horas de aula entre as três ou quatro turmas, o tempo dedicado a cada uma delas é bem menor, em torno de duas horas diárias – a metade. Com isso, os alunos recebem menos conteúdo do que aqueles que frequentam turmas regulares.
"Os cursos de Pedagogia não contemplam a discussão teórica sobre como trabalhar com classe multisseriada, o que ensinar em determinados momentos, a metodologia mais adequada para que esses alunos tenham acesso integral ao currículo válido em todo o país para que quando forem prestar um vestibular, disputar uma vaga, tenham a mesma eficiência que os alunos que frequentaram escola com ensino de melhor qualidade", afirma Luiz Bezerra, da UFSCar.
Para ele, o combate à multisseriação não altera a situação, mas sim ao tempo reduzido de aula desses alunos, que aprendem muito menos conteúdo. Se isso for corrigido, acredita, melhora o nível de aprendizagem e aumentam as chances desses estudantes.

Expulsão do campo

Sintoma do desprezo histórico dos governantes pela educação pública destinada aos filhos da classe trabalhadora, seja do campo ou da cidade, onde muitas classes têm sido extintas, o  fechamento de escolas do campo é outra face da perversidade dos conflitos agrários. "Sabemos que as prefeituras são pressionadas pelos ruralistas. Então, fechar a escola é mais uma estratégia que impulsiona o êxodo rural", diz o dirigente do MST Carlos Roberto da Silva, o Beto.

O professor da UFSCar concorda: Fechar escolas rurais significa expulsar as famílias de suas terras ou assentamentos para outras áreas na medida que buscam dar educação aos seus filhos. "Porque se quiserem mantê-lo na escola, vão ter de buscar outro lugar para morar. Dependendo da região, as escolas ficam distantes 10, 15, 20 quilômetros daquela que foi fechada", lembra o professor da UFSCar.  
Assim, segundo ele, o agronegócio fragiliza também os assentamentos e desestimula a luta pela reforma agrária. Afinal, sem escola, as chances de sucesso são menores do que quando se abre uma escola para os assentados e seus filhos. "Muitas vezes, para sair de uma ponta do assentamento para ir à outra, onde fica a escola, o aluno acaba levando horas. Isso dificulta a permanência da criança na escola e da família ali."
Em meio a enormes desafios,  só resta a luta. "Ir às ruas, denunciar a situação e arregimentar aliados", diz Bezerra. Para o professor, a saída é a união contra o latifúndio e todas as formas de opressão impostas pelo poder econômico. "Em suma, fazer o que o movimento vem fazendo, ocupar terras e escolas e, forjar novas formas de enfrentamento. Este enfrentamento tem que ocorrer também nas universidades, nas escolas, nos sindicatos e sobretudo através das lutas dos movimentos sociais. Não podemos, de forma nenhuma, dar trégua nesta luta. A escola no campo pode ser um bom espaço de discussão desta realidade." FOTO: BLOG ROBERTO BALESTRA
Créditos: Rede Brasil Atual

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