Conhecido por apresentar em 2013 um relatório francamente favorável à ampliação da terceirização, o deputado Arthur Maia – na época no SD, hoje no PPS baiano – espera divulgar em meados de março seu parecer sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287, de reforma da Previdência Social. O plano de trabalho na comissão especial foi apresentado em 14 de fevereiro, e prevê oito audiências públicas e seminário internacional.
A guerra começou, como diz o economista Eduardo Fagnani, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O que está em jogo no Brasil não é um ajuste fiscal, é uma mudança no modelo de sociedade”, afirmou, durante evento organizado pelo Dieese e por nove centrais sindicais, que tentam unir forças para derrubar (como defendem alguns) ou modificar (como tentam outros) a PEC 287. Em comum, todos refutam o argumento central do governo Temer, que fala em necessidade de “reforma” para manter o sistema viável.
Argumentos sempre usados de “déficit” ou “rombo” da Previdência são falsos, diz Fagnani. “O déficit é a parte do governo que, embora prevista na Constituição, não é contabilizada”, afirma. “Não há argumento para dizer que o problema fiscal brasileiro é a Previdência. A estratégica do ajuste fiscal é comprimir o gasto primário.” Já o gasto financeiro, acrescenta, “deixa explodir”.
Para a oposição no Congresso, a PEC tem o sistema financeiro como interessado direto. Assim que Maia foi escolhido como relator, emergiu a informação de que o deputado recebeu contribuições, em sua campanha eleitoral, de bancos e seguradoras – apenas da Bradesco Vida e Previdência, foram quase R$ 300 mil, em 2014. Para o parlamentar, isso nada mais é que uma “ilação maldosa”.
O presidente da comissão especial, Carlos Marun (PMDB-MS), deve conduzir a tramitação da PEC 287 conforme deseja o Planalto sem temer pressões contrárias. Marun já mostrou resistência ao defender, quase solitariamente, o agora ex-deputado Eduardo Cunha antes de sua cassação. “Quem defende Cunha, defende qualquer coisa”, diz um observador.
Ou seja: para combater a PEC, será preciso muita unidade e capacidade de articulação e pressão, diante de um Congresso francamente alinhado ao governo e às reformas, incluindo a trabalhista. Para o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, trata-se de desafio semelhante ao do período pré-Constituinte, em meados dos anos 1980. Ele avalia que o movimento sindical precisa se organizar para evitar “um dos maiores desmontes institucionais e sociais da história”. E as centrais não são contra mudanças, acrescenta, tanto que apresentaram várias propostas em negociações com a equipe de Michel Temer. “O projeto que está aí não nos representa. Queremos uma reforma que dê proteção universal aos trabalhadores, eficaz na cobrança, com sonegação zero, universal e sustentável.”
As centrais mandarão representantes a Brasília no dia 21, para conversar com os presidentes da Câmara e do Senado, líderes partidários e com o comando da comissão especial da reforma da Previdência (e também da trabalhista). Em 15 de março, acompanhando uma data já aprovada pelos trabalhadores em educação, haverá um dia nacional de protestos e paralisações contra a 287.
Em meados de janeiro, o Dieese divulgou nota técnica com restrições severas ao projeto do governo, cuja premissa básica é dificultar ou impedir o acesso a benefícios – e reduzir o valor para quem conseguir recebê-los. Tornaria a aposentadoria integral uma “utopia” e, em uma análise mais geral, “favorece o aumento da vulnerabilidade social, da pobreza e das desigualdades no país”. O instituto também identifica favorecimento: “Transparece ainda na proposta um objetivo implícito de fragilizar a Previdência Social e estimular a difusão de sistemas privados de previdência”.
Para obter a aposentadoria integral, pelas regras propostas na PEC, um trabalhador precisaria contribuir durante 49 anos, uma façanha se considerados fatores como rotatividade e informalidade no mercado de trabalho brasileiro. Com base em dados de 2014 da própria Previdência, segundo os quais cada trabalhador pagou em média 9,1 contribuições naquele ano, o tempo aumenta consideravelmente: “Seria necessário esperar 64,6 anos, depois de iniciar a vida laboral, para completar o correspondente a 49 anos de contribuições”.
O instituto destaca que a exposição de motivos da PEC não traz explicação sobre a proposta de mudança do cálculo do benefício. “Tudo indica que o raciocínio utilizado foi: subtrair a idade legal de início de trabalho no Brasil (16 anos) da idade mínima de aposentadoria proposta (65 anos) e fazer com que ao resultado dessa diferença (49 anos) corresponda à aposentadoria integral”, analisa. “A suposição, totalmente irrealista para a realidade brasileira, é que a pessoa trabalhadora contribuiu todos os meses, ininterruptamente, no período entre os 16 e os 65 anos, sem nunca ter ficado desempregada, inativa do ponto de vista econômico, na informalidade (isto é, como autônoma sem contribuição previdenciária) ou na ilegalidade (contratada sem carteira). A suposição do início do período contributivo aos 16 anos também desconsidera o princípio de que, nessa idade, a pessoa ainda deveria estar em processo de escolarização e de formação para o trabalho.”
Mais informações da própria Previdência mostram potencial excludente da proposta governista. Segundo divulgou o jornal Folha de S.Paulo na edição de 12 de fevereiro, 79% das aposentadorias por idade concedidas em 2015 foram para trabalhadores com menos de 25 anos de contribuição, que pela PEC passa a ser o tempo mínimo exigido – o atual é de 15 anos.
Recortes por grupos sociais também atestam que alguns setores sofrerão ainda mais caso as mudanças sejam implementadas. Estudo elaborado por um grupo de trabalho no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta consequências negativas para as mulheres. “Estimamos que cerca de 47% das atuais contribuintes não conseguirão se aposentar, em geral as mais precarizadas, aumentando fortemente a demanda por BPC (benefício de prestação continuada)”, diz o estudo. “Eles sabem disso. Por isso mesmo, estão desvinculando o BPC do salário mínimo”, diz a pesquisadora Joana Mostafa, da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea. Para ela, a PEC 287 representa “redução do Estado na proteção social”.
Estabelecer a mesma idade para homens e mulheres na concessão da aposentadoria, como quer o governo, significa uma “mudança radical”, dizem os pesquisadores. “A diferença de idades para homens e mulheres reconhece um maior risco da mulher de se ausentar ou participar menos do mercado de trabalho por força da divisão sexual do trabalho ainda desigual.”
Segundo Joana, que participou do seminário do Dieese, apesar de alguma melhoria nos últimos anos, a desigualdade persiste: com salário equivalente a 70% do recebido pelos homens, as mulheres ainda têm jornada semanal, em média, de oito horas a mais. Em um período de 25 anos de contribuição, isso corresponderia a um acréscimo de 4,5 anos. Ou mais, considerando a informação de que o trabalhador, em média, contribui nove a cada 12 meses – o período aumentaria para 5,4 anos.
No caso dos trabalhadores rurais, a exclusão pode ser ainda maior, segundo Evandro Morello, assessor da Secretaria de Políticas Sociais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Ele estima que a PEC tira a expectativa de mais de 70% dos camponeses de alcançar a aposentadoria. “Isso afeta a economia dos municípios, a produção de alimentos.”
Evandro acredita que a reforma representará um desestímulo à permanência no campo, principalmente para os trabalhadores mais jovens: “O jovem tem de ser muito herói para permanecer no campo e manter-se no processo produtivo da agricultura. Quem vai ficar no campo produzindo alimentos para o Brasil?”, questiona.
Pela proposta do governo, o trabalhador rural passaria a ter uma contribuição individual, em vez da contribuição sobre a venda, como ocorre hoje (artigo 195 da Constituição), algo inviável pela realidade do agricultor, avalia o assessor da Contag.
A PEC também aumenta para 65 anos a idade mínima para aposentadoria – hoje é de 60 anos para os homens e de 55 para as mulheres. Evandro afirma que quase 80% dos homens e 70% das mulheres começam a trabalhar no campo com menos de 14 anos. “Quem vai conseguir alcançar essa idade (65), considerando que é um trabalho penoso?”, questiona.
A rigidez das novas regras poderá fazer com que também os jovens urbanos se sintam pouco atraídos a contribuir para a Previdência, acredita o economista Eduardo Fagnani. “Está se disseminando a ideia de ‘se não vou usar, por que pagar?’”, comenta. Fatores como uma saída do público jovem da base de contribuintes e mudanças nas relações de trabalho que levam à menor formalidade, como a terceirização, podem causar “queda brutal” da receita. Ele lembra que a Previdência é sustentada pelo trabalhador ativo, pela sociedade e “sobretudo pelo governo”, aproveitando para contestar afirmação corrente de que o sistema se torna inviável porque há, progressivamente, menos pessoas na ativa e mais inativos.
Falta diálogo
Quem também contesta os dados do governo é o presidente da Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), Vilson Antonio Romero. “O governo dá uma pedalada na Constituição e faz uma contabilidade criativa”, afirma sobre o falado “rombo” da Previdência.
Segundo ele, com todas as fontes de financiamento previstas para manutenção da seguridade social, o sistema não tem déficit. Mas desde 1994, com a criação do Fundo Social de Emergência, a atual Desvinculação de Receitas da União (DRU), o governo passou a contar com um “instrumento de tunga”, como ele define, citando o uso para outros fins da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), além de renúncias previdenciárias, incluindo desonerações da folha de pagamento e entidades filantrópicas.
Romero concorda que o setor rural é fator de preocupação, mas discorda do ônus para o trabalhador. “Temos de chamar o agronegócio a contribuir.” Outra fonte de recursos estaria na venda de imóveis, que representam anualmente bilhões em manutenção e outras despesas. “A Previdência Social é a maior imobiliária do Brasil. E não aliena isso”, afirma o presidente da Anfip, defendendo ainda aperfeiçoamento do combate à sonegação.
Sobre a PEC 287, ele vê uma “lógica fiscal, no sentido de conter gastos”, mas afirma que é preciso considerar outros aspectos, inclusive em termos de manutenção da formalidade, para que isso não represente perdas – inclusive fiscais – no futuro. “Isso requer uma decisão da sociedade”, observa o diretor da OIT. Ele considera a Convenção 102 da OIT, ratificada pelo Brasil, “uma boa âncora para o debate” – essa norma trata de critérios básicos para regimes de seguridade social, em relação a contribuições, pagamentos e governança.Está faltando diálogo, diagnosticou o diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Peter Poschen. Para ele, o debate sobre a Previdência precisa ser aprofundado para que resulte em uma reforma “justa e equilibrada”, já que se trata de um tema complexo e que afetará a atual geração e as próximas. Essa discussão precisa ser feita com todos os agentes sociais e com o maior número de informações. “Nossa percepção é que, nesse sentido, ainda falta muito.”
Entre os princípios básicos da OIT, está a cobertura universal do sistema, com base na solidariedade social. Um levantamento da organização mostra tendência mundial de expansão da cobertura previdenciária, embora metade dos idosos ainda não receba benefícios. A maioria dos países têm sistemas públicos. Alguns desistiram da privatização. Um dos modelos mais conhecidos, o do Chile, é hoje objeto de questionamento. “Há uma grande discussão sobre o que fazer com o sistema privado, que se tornou impopular”, diz o especialista da OIT Fabio Durán. Por Vitor Nuzzi. da Revista do Brasil
Créditos: Rede Brasil Atual
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