O termo “refugiados urbanos” é uma expressão utilizada pelo programa do Projeto Quixote que trata do drama existente em diversos países e em todo o Brasil: a situação de crianças e adolescentes que se “refugiam” no centro da cidade como “mecanismo de afirmação da vida”.
“Trata-se de um exílio: precisar sair de casa ou distanciar-se dela, às vezes romper com a família, com a história das referências da comunidade de origem, com as pessoas com quem possui vínculos afetivos, com os cheiros, as marcos do seu lugar, da sua mátria”, diz trecho do livro Refugiados Urbanos, rematriamento de crianças e adolescentes em situação de rua, lançado nesta quinta-feira (28), em São Paulo.
Fundado em 1996, o Projeto Quixote é uma entidade com trajetória reconhecida pelo trabalho com crianças, adolescentes, jovens e famílias em situação de risco, por meio do atendimento clínico, pedagógico e social. Com o programa Refugiados Urbanos, o objetivo é o “rematriamento” da criança e do adolescente, ou seja, seu retorno à comunidade de origem – sendo "mátria" um conceito entendido a partir de um neologismo criado pelo escritor argentino Ernesto Sábato.
O contexto nacional de retrocessos e perda de direitos permeou o tom emotivo presente no auditório do Projeto Quixote durante o lançamento do livro – desenvolvido como uma espécie de marco pedagógico dos 21 anos de atuação da instituição.
“O Projeto Quixote facilita uma trajetória alternativa à rua, que privilegia arte, saúde, educação e cultura. Trabalhamos com o conceito de rematriamento, um acompanhamento longitudinal, tecendo junto com a criança sua biografia, sua história presente e seus desejos futuros. Direcionamos nosso trabalho, portanto, também às famílias, acompanhando-as na (re)construção de uma rede local de proteção e cuidados”, explica Auro Danny Lescher, fundador do projeto, no posfácio do livro.
Segundo pesquisa feita pelo Quixote, em 2011, com crianças e adolescentes em situação de rua na região central de São Paulo, a negligência e o abandono estão associados como a principal razão para o começo da vida nas ruas, com 37,2% das respostas. A seguir vem a violência psicológica ou física (18,3%), a violência sexual (15,7%) e, em quarto lugar, o uso de drogas, com 12,4%. Somados, violência e abandono representam 71,2% dos motivos que levam uma criança a sair de casa e fazer das ruas e praças da cidade o seu novo “lar”.
Privilegiando o relato em primeira pessoa do singular, o livro Refugiados Urbanos, rematriamento de crianças e adolescentes em situação de rua, da editora Peirópolis, possibilita um mergulho na rotina dos educadores terapêuticos (ETs), nome dado aos profissionais do atendimento psicossocial. No Quixote, a sigla também define o “educador tridimensional”, em razão das três dimensões do acolhimento: clínica, pedagógica e social.
“Compreendemos que, ao contrário do que pensam muitas pessoas, não é a droga que leva as pessoas às ruas, na grande maioria das vezes. Mas as ruas que levam às drogas. O que isso quer dizer? Que tem sentido no pacote-rua, muitas vezes, o uso de drogas. Ninguém está na rua porque está bem. Não é bem 'uma questão de escolha', principalmente falando de crianças e adolescentes. Deparar com esse cenário de crianças vivendo nas ruas é violento. Estamos falando de violência. A ida às ruas como uma possibilidade menos aniquiladora denuncia muitas coisas. Como era essa casa antes? Como era essa família? Havia família? O que se passa para alguém sentir o chão frio da rua mais quente do que o de casa? As perguntas são inesgotáveis. Não é possível respondê-las rapidamente”, reflete no livro a “ET” Lívia.
“De alguma maneira, nossa presença na chão das ruas dá visibilidade a esses meninos. Ao nosso lado, eles são vistos desenhando, jogando damas ou soltando bolinhas de sabão... E, nesses momentos, os olhares de estranhamento parecem quase lembrar que, por trás dos saquinhos de cola sempre na mão, essa infância insiste em aparecer”, destaca a educadora terapêutica que assina apenas como Camila.
O livro também reflete sobre os territórios da cidade e como as crianças e adolescentes transitam por eles, a sobrevivência nas ruas, a metodologia do “rematriamento” e inclui até mesmo um “glossário de absurdos”, tais como: criança com fome; criança com frio; criança sozinha; criança na rua; fome de criança; frio de criança, solidão de criança, entre outros absurdos.
Emocionado, Auro Lescher, fundador do Projeto Quixote, lembrou do seu estado de espírito há duas décadas, quando a entidade nascia. Naquela época, disse ele, acreditava que 20 anos depois o drama das crianças de rua seria uma situação já “quase superada”. Adotando um tom ainda utópico, porém mais comedido, ele destacou que o pensamento iluminista sempre o fez crer na evolução da sociedade. Atualmente, entretanto, disse ver tal problema de um modo mais realista, separando o que é desejo do que é cotidiano.
“Os tempos continuam difíceis para os sonhadores da paz”, ponderou. Confessando ter medo de ficar restrito “às trincheiras e resistências” nos próximos 20 anos, o fundador do Projeto Quixote afirmou que, para mudar a vida das crianças e adolescentes que vivem nas ruas, será preciso atuar “com muito vigor”. “O ridículo não pode triunfar sobre o sublime.”
Ao término da fala do fundador do Projeto Quixote, uma das ETs quixotescas pegou o microfone para afirmar não saber como será a situação das crianças e adolescentes de rua daqui a 20 anos, mas disse ter certeza de como seria dali a 20 minutos.
“Este prédio vai estar cheio de meninos e meninas almoçando, brincando ou descansando. Sendo crianças, longe da violência. É isso que vai acontecer daqui a 20 minutos, e é por esses 20 minutos que eu trabalho todos os dias.” O relógio marcava 12h10 e o lançamento do livro Refugiados Urbanos chegava ao fim. Hora do almoço para dezenas de crianças em situação de rua. Por Luciano Velleda, da RBA.
Créditos: Rede Brasil Atual
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