As cidades no Brasil já foram imaginadas como alento à dominação autoritária e conservadora de mais de quatro séculos amplamente patrocinada pela antiga oligarquia agrarista. Com a Revolução de 1930, as cidades foram sendo convertidas em alvo fundamental do projeto urbano e industrial urdido pelas forças do tenentismo reformista.
Meio século depois, quando contemplam mais de 80% da população, as cidades assumiram a condição de lócus privilegiado da violência, pobreza, desemprego, enchentes, desmoronamento, imobilidade pública e outros males. A ofensiva das forças antidemocráticas no Brasil após a década de 1930 foi responsável pelo avanço da urbanização excludente, parteira de uma sociedade cindida, cada vez mais polarizada e ameaçadora das bases da coesão social.
Do ranking das cinquenta cidades violentas com mais 300 mil habitantes, por exemplo, o Brasil responde atualmente por mais de 1/3 (17 municípios). Dos quase 9 mil assassinatos por armas de fogo em 1980, o país passou para cerca de 45 mil em 2014, com crescimento de 400%.
Nos dias de hoje, mais de 60% dos assassinatos atingem a faixa etária juvenil de 15 a 29 anos, sendo quase 95% do sexo masculino. Nos últimos dez anos, os homicídios contraíram para o segmento branco, ao passo que para a população negra cresceu próximo de 50%.
Da violência instaurada, ganha espaço a rebaixada condição de vida dos moradores das cidades brasileiras. Prevalece, ainda, um enorme contingente não atendido sequer por serviços básicos, uma vez que cerca de 45% da população urbana segue sem esgoto tratado, o que leva ao desvio dos dejetos para o curso de reios e riachos. A poluição das águas decorrente do não tratamento de esgotos torna mais grave a própria crise hídrica, cada vez mais presente no quotidiano dos brasileiros.
Isso sem mencionar o tempo perdido durante os deslocamentos realizados intracidade. Enquanto o paulistano demora em média quase 45 minutos para se deslocar da casa para o trabalho, o carioca e o recifense comprometem cerca de 35 minutos diariamente. Ou seja, mais de 15 horas mensais, em média, sem nenhuma utilidade, salvo a mobilização em busca da sobrevivência no meio urbano ao custo de quase 40% do rendimento liquido do trabalhador de salário de base, incomparavelmente superior ao que se compromete, por exemplo, em Paris, Madri, Nova Iorque e Berlim.
Assim como o desemprego acentuou-se enquanto fenômeno urbano, a pobreza seguiu presente, sobretudo nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos. Ao mesmo tempo em que reúne áreas ricas, com infraestrutura sofisticada, geralmente nas áreas centrais, e diversas instalações comerciais especializadas (como os hipermercados e shopping centers), parques e aparatos de segurança avançado, a periferia das cidades se estendeu marcada pela precarização das condições de vida e trabalho.
Nesses termos, as cidades no Brasil assumiram mais a modernidade capitalista demarcada pela forma privatizada, segregada e segmentada de vida com baixa integração social do que o espaço democrático e o exercício da cidadania. As experiências de administração democrática em diversas localidades municipais buscaram enfrentar problemas estruturais assentados na lógica excludente e desigual, incorporando práticas inclusivas aos novos atores.
Tudo isso, contudo, termina retroagindo rapidamente com o receituário neoliberal conduzido pelo governo Temer, quando não aprofundado ainda mais pela presença de administrações liberais conservadoras. Sem mudar drasticamente a natureza das cidades, medidas isoladas e pontuais de espetar alguns dos dramas da urbanidade brasileira dificilmente alcançarão algum êxito.
Isso é o que parece ficar a cada vez mais evidente em relação à recente intervenção militar no Rio de Janeiro. Por Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas. Foto: Fábio Rodrigues/ABR.
Créditos:Rede Brasil Atual
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