RFI-A presidente, afastada há dois meses e duas semanas do Palácio do Planalto, falou à RFI diretamente do Palácio da Alvorada, em Brasília.
“O Brasil vive um surto de misoginia”, afirmou, concluindo que “as mulheres vieram para ficar definitivamente” na política brasileira. Confira a íntegra da entrevista abaixo.
RFI - A presença da senhora na presidência da República fez o machismo brasileiro sair do armário: inúmeras foram as agressões sexistas, não apenas contra a senhora mas contra as mulheres em geral. Como reação, testemunhamos uma “primavera feminista” no Brasil. A senhora acredita que este levante de mulheres continuará?
Dilma Rousseff – Eu acredito que as mulheres vieram para ficar no cenário brasileiro. De fato, a primeira mulher eleita para a presidência da República teve 54,5 milhões de votos, numa segunda eleição. Estamos assistindo a um grande surto de misoginia no Brasil. Esse surto de misoginia, junto a esse impeachment sem crime, revela um componente sexista, que se manifesta na avaliação que é sempre feita da presidente, usando estereótipos tais como “dura, insensível e fria”, ou “histérica, que tem ataque de nervos”. Sabemos perfeitamente de onde vem todo o conceito de histeria (*). O sensacional é que eles não acertam, entre os modelos contraditórios que escolhem para me caracterizar. As mulheres vieram para ficar porque percebem que este golpe sem crime tem por objetivo de um lado afastar investigações de corrupção, e de outro adotar uma agenda de governo não aprovada nas ruas, extremamente conservadora e ultra-neoliberal.
RFI – Os Jogos Olímpicos do Rio acontecem num cenário mais complexo que a Copa de 2014. Epidemia de Zika, o Rio em estado de calamidade financeira, delegações que se recusam a ficar na Vila Olímpica. Em primeiro lugar: a senhora participará da cerimônia de abertura?
Dilma Rousseff – Eu não pretendo participar da Olimpíada numa posição secundária. Porque em primeiro lugar esses jogos são fruto de um
grande trabalho do ex-presidente Lula, no sentido de trazê-la para o Brasil. Em segundo, houve um grande esforço do governo federal que viabilizou a infraestrutura dos jogos, e por infraestrutura eu quero dizer o Parque Olímpico e a Vila de Deodoro. Quero deixar claro que todas as questões relativas à Vila dos Atletas dizem respeito a uma PPP, parceria público-privada entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o setor privado. Acredito que a questão do zika vírus não deve criar nenhum constrangimento no sentido do comparecimento das pessoas. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que este inverno, com temperaturas abaixo da média, não é o momento de proliferação do mosquito. E pelo menos até dois meses atrás havia todo um sistema de contenção do zika vírus pelos órgãos competentes. Acredito que os Jogos reúnem as condições para transcorrerem num clima tranquilo. Principalmente se adotarem os procedimentos que nós deixamos estabelecidos, tanto na área de segurança, quantos às demais áreas contíguas às instalações. Principalmente o centro de mídia, toda a questão do acompanhamento na área de saúde, e a segurança dentro dos equipamentos onde se transcorrerão os jogos.
RFI – Dentro deste contexto, o Rio está preparado para receber os Jogos Olímpicos?
Dilma Rousseff – Sim, acho que o Rio está preparado para receber os jogos dentro deste contexto. É necessário que as autoridades não “descansem” antes da Olimpíada. Nós acompanhamos a Copa do Mundo em 12 cidades brasileiras e foi um processo muito intenso. Por exemplo na área de segurança havia centros de comando e controle conectados nacionalmente. Acredito que do ponto de vista da segurança não haverá nenhum problema, caso os procedimentos sejam seguidos à risca. Além disso, temos uma experiência acumulada da Copa do Mundo de dois anos atrás, da vinda do Papa ao Brasil, como os Jogos da Juventude e os Jogos Internacionais Militares, que levaram o Brasil a adquirir um know-how na área de grandes eventos. Os centros onde acontecerão as competições terão uma estrutura adequada e já entregue.
RFI – Aqui fora, especialmente na França e na Alemanha, a questão do terrorismo é uma evidência presente e trágica. A senhora acha que o Rio de Janeiro está preparado para ataques terroristas durante os Jogos Olímpicos?
Dilma Rousseff – Eu acredito que, sem sombra de dúvida, o mundo tem assistido lamentavelmente a ataques terroristas e também a ações de intolerância como foi o caso da boate em Orlando. No caso da Olimpíada, o Brasil manteve contato com todas as unidades de inteligência dos principais países do mundo com experiência nessa questão. Temos a melhor segurança possível. Além disso, há toda uma tradição no Brasil de afastamento com essa questão do terrorismo. Não temos conflitos étnicos aqui, não temos conflitos religiosos, o clima é melhor. Tenho consciência de que isso não é garantia de que não tenhamos nenhum problema, por isso tomamos todas as precauções necessárias.
RFI – Em relação ao voto no Senado, que acontece dentro de algumas semanas, a senhora acredita que deve continuar na presidência da República mesmo com as recentes acusações das delações premiadas do João Santana e da mulher dele?
Dilma Rousseff – Querida, nem o João Santana nem a mulher dele acusaram a minha campanha. Eles se referem a episódios que ocorreram depois de encerrada a campanha, e depois que o comitê financeiro da minha campanha foi dissolvido, dois anos depois. Então não há nenhuma afirmação que atinja a mim e a minha campanha. E é público e notório que eu jamais autorizei caixa 2 na minha campanha. Eu estou lutando para que essas acusações contra mim do processo de impeachment, e elas se restringem a duas questões – o que eles chamam de “pedaladas”, as transferências de recursos do orçamento da União para o financiamento do plano Safra da Agricultura. O Ministério Público Federal e a perícia do Senado afirmam que não houve “autoria”, ou seja, eu não participei. Não podem me acusar de um crime do qual não participei. O Ministério Público Federal não viu crime de responsabilidade e arquivou o processo. A perícia do Senado mostra que não há dolo em momento algum. Usam esta alegação pela completa falta de argumentos para me acusar. Assim sendo, eles inventaram um “não-crime”. Estou sendo acusada e julgada por um “não-crime”. E não sou eu que digo isso, são órgãos insuspeitos e institucionais do país. Senadores conscientes, corretos e comprometidos com a democracia e o estado democrático de direito saberão optar corretamente.
RFI – A senhora recorrerá se for o caso da decisão do Senado no Supremo?
Dilma Rousseff – Tenho dito sistematicamente que o farei. Quero crer que possivelmente eu não precise levar esta questão ao Supremo.
RFI – Voltando ao exercício da Presidência, quais seriam suas primeiras medidas?
Dilma Rousseff – Temos uma situação atípica no Brasil. Acho que em nenhum país do mundo, um governo provisório interino sem voto assume por um período de interinidade e muda toda a política de governo. E muda, inclusive, definindo projetos radicalmente opostos ao programa pelo qual fui eleita. Isso vai desde a saúde, quando tentam dizer que a saúde pública brasileira, o SUS, Sistema Único de Saúde, não cabe no orçamento e portanto que se deveria criar planos de saúde de baixa qualidade para os pobres, uma das ameaças em andamento. Outro exemplo é a educação pública brasileira, responsável pela redução da desigualdade. A desigualdade não se reduz só por conta de transferência de renda. A democratização da educação é essencial para isso. Atualmente eles tentam também privatizar o sistema de ensino público brasileiro, o que é gravíssimo. Além disso, a perda de direitos trabalhistas impostos. Por exemplo, falam em criar uma lei da terceirização na qual os trabalhadores poderiam ser transformados em pessoas jurídicas, ou seja, em pequenas empresas, e portanto sem os direitos trabalhistas correlatos. É certo que no Brasil existem 11 milhões de trabalhadores terceirizados, que têm de ser reconhecidos, oficializados. Isso é uma coisa. Outra coisa completamente diferente é transformar todos os trabalhadores em pessoas jurídicas. Além disso, há uma perda de direitos ao prevalecer o “acordado sobre o legislado”. O acordo trabalhista, fora dos sindicatos, entre uma população desorganizada de trabalhadores, uma vez que a sindicalização ainda é precária no Brasil – esse acordo prevalecer sobre as grandes conquistas trabalhistas brasileiras, que remontam à década de 30, isso é algo bastante incorreto. Então há muita coisa a ser feita, além do nosso esforço de fazer o nosso país sair dessa crise. A crise econômica dentro do Brasil só tomou essa proporção por causa da crise política. Aliás, eu acredito que se intensificando a crise econômica, criou-se um ambiente propício para o impeachment.
RFI – A senhora acena com eleições gerais para repactuar o Brasil. O sistema político brasileiro entrou em colapso?
Dilma Rousseff – Sim, o sistema político brasileiro entrou em colapso por vários motivos. O impeachment e aquela sessão da câmara de deputados do dia 17 de abril, em que houve uma votação que estarreceu a população brasileira e, acredito, o mundo, quando parlamentares corruptos votam contra a corrupção, elevou a hipocrisia a seu mais alto grau. E uma coisa gravíssima: vota-se a favor da tortura. Temos entre 35 a 37 partidos. Há uma fragmentação, um fisiologismo que se baseia no fato de que os partidos perdem o sentido programático e passem a perseguir interesses específicos e estritos. Sem falar no grande número de pessoas formalmente acusadas de corrupção e há por parte da população uma descrença generalizada na estrutura política em geral, de que a política é sinônimo de práticas antiéticas. Enfim, a política, essa atividade que é fundamental numa sociedade democrática sem a qual não há democracia, passa por um processo de desqualificação, de descaracterização, e as pessoas passam a não querer saber de política, e aí temos o caldo de cultura para salvadores da pátria, para saídas muito complicadas e ditatoriais e de direita, que já aconteceram na América Latina e no Brasil.
RFI – Gostaria de voltar à frase da senhora: “votou-se pela tortura”. Um episódio que chocou a opinião internacional, o deputado Jair Bolsonaro saudou o coronel Carlos Brilhante Ustra, durante seu voto pró-impeachment no Congresso. A senhora é conhecida pela firmeza e pelo controle. Mas como a senhora se sentiu no momento daquela provocação?
Dilma Rousseff – Eu achei que era um momento muito triste para o Brasil, era como se a História voltasse atrás. Algo muito importante aconteceu no Brasil nos 20 anos depois que o Sr. Carlos Alberto Brilhante Ustra torturava dentro de uma unidade em São Paulo. Nesse meio tempo, ocorreu a democracia, e com ela a condenação da tortura e das práticas arbitrárias. Naquele momento, na Câmara federal do país, ele [Bolsonaro] não vota só a favor da tortura, ele vota pela tortura feita a mim, ele vota neste sentido. O que é extremamente grave, em nenhum Parlamento civilizado do mundo teria sido aceito.
Dilma Rousseff – Considero esta visão equivocada. A minha relação com o ex-deputado federal, ex-governador e ex-ministro do presidente Lula, Ciro Gomes, é bastante antiga. Tenho grande respeito e consideração por ele. Ele é, sem sombra de dúvida, um dos políticos mais capazes, mais sérios e mais comprometidos com a ética no Brasil. E possui muita experiência. Também tenho muito respeito pela Luíza Erundina, uma pessoa que foi do Partido dos Trabalhadores e tem toda uma tradição, uma militância, e agora é candidata a prefeita de São Paulo. Outro candidato de esquerda é o Fernando Haddad. Muito importante que isso ocorra, o Brasil precisa de pessoas dessa qualidade da Luíza Erundina, do ex-deputado Ciro Gomes, isso significa que há um campo popular no Brasil, integrado por pessoas do PDT, o partido de Leonel Brizola, pessoas do PC do B, e personalidades como a Luza Erundina e o Ciro Gomes. Sempre manterei contato com essas pessoas e isso não significa nenhum abandono do Partido dos Trabalhadores. Para nós, interessa que essa aliança seja mais forte e mais consolidada. É sempre muito importante que os setores progressistas não se dividam. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR