domingo, 14 de setembro de 2014

Transferência de renda: o direito de pensar em futuro



Pesquisadores mostram que, mais do que transferir renda, o Bolsa Família emancipa pessoas que não existiam para o Estado e reduz a influência dos “coronéis”


Minha filha já alcançou coisas que eu não alcancei e meus filhos não passam fome... Eu digo pra eles: olha, vocês têm de estudar porque tem a oportunidade que eu não tive. A única herança que eu tenho é botar eles na escola”, diz dona Norma Alves Duarte. “Estou terminando meus estudos e pretendo continuar... Quero fazer curso de enfermagem, fazer faculdade e dar uma vida melhor para minha mãe, porque eu não quero seguir a carreira que ela teve. Quero ter um futuro para lá na frente eu me orgulhar”, completa a jovem Mirele Aline Alves da Rocha.
Esses depoimentos estão no curta-metragem Severinas, disponível na internet, que a documentarista Eliza Capai realizou por meio do concurso de microbolsas de reportagem da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.
No vídeo com duração de dez minutos, gravado entre julho e agosto de 2013, em Guaribas, sertão do Piauí, outras mulheres participantes do programa dão sinais de emancipação, deixando para trás a submissão e a extrema pobreza. As histórias inspiraram outro trabalho de Eliza, que está incorporando cenas extras e mais duas personagens, além de corrigir cores, desenho, som e mixagem com qualidade para sala de cinema para oNo Devagar Depressa dos Tempos. A estreia está prevista para este mês de setembro, no Vitória Cine Vídeo, festival de curtas realizado na capital capixaba.
Como outros documentaristas do Brasil e do exterior, Eliza encontrou inspiração no livro Vozes do Bolsa Família – Autonomia, Dinheiro e Cidadania (Editora Unesp), escrito por Walquiria Leão Rego, professora de Teoria Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e o italiano Alessandro Pinzani, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Lançada em junho de 2013, ano em que o programa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) completou dez anos, a primeira edição superou expectativas, despertou o interesse do público além dos muros da academia e esgotou-se em apenas três meses. No final de agosto foi lançada a sua segunda edição.
Para os autores, o êxito está não só na análise qualitativa dos impactos do programa federal sobre seus participantes ou bolsistas – eles combatem o termo beneficiário, que consideram pejorativo. Mas, principalmente, na voz dada a esses brasileiros historicamente esquecidos, negligenciados e abandonados. “Nossa pesquisa desfez equívocos, estereótipos e preconceitos que insensibilizam as pessoas, reforçam visões erradas, inexatas e ignorantes sobre o programa e sobre a pobreza e colocam a luta contra a desigualdade como algo menor, sem importância”, diz Walquiria.
Com recursos próprios, eles percorreram os sertões de Alagoas, Piauí, Maranhão e as regiões do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e de Recife, entre 2006 e 2011, ouvindo centenas de depoimentos de pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Viram na prática que a pobreza tem mesmo cor, cheiro, varia de região para região e pode ser ainda mais cruel na falta de acesso a serviços básicos, como escolas e postos de saúde e de oportunidades de trabalho. E as histórias que ouviram, bem como as realidades que testemunharam nesses seis anos, desmentem a superficialidade e o preconceito que marcam a compreensão sobre o programa.
Passar a existir
“No sertão não tem peixe”, responde sempre Alessandro Pinzani a uma das críticas mais comuns, de que o Bolsa Família dá o peixe e não ensina a pescar. “O ditado não faz sentido entre populações carentes de tudo”, destaca. Conforme os autores, tal estereótipo – da acomodação pela renda fácil, garantida todo mês – evidencia a ignorância sobre o funcionamento da política de transferência de recursos e, principalmente, sobre a dura realidade das pessoas pobres, na qual a renda é apenas uma das dimensões da pobreza.
“Vimos famílias abandonadas, cercadas por grandes propriedades, sem estradas, escolas, postos de saúde, onde uma doença, um acidente sem atendimento pode se transformar em tragédia. Analfabetos dificilmente conseguiriam emprego mesmo que houvesse fábricas. Como então dizer que não trabalham por que não querem? As pessoas esquecem que outra dimensão da pobreza é a privação de habilidades, de potencialidades”, obser­va Walquiria.
O que não falta são relatos que expõem o abandono histórico dessas populações. “Antes ninguém olhava para nós. Foi a primeira vez que enxergaram a minha pessoa, me disse uma senhora do interior alagoano”, conta a pesquisadora. “Esta é a primeira vez que um programa oficial se ocupa delas, que as fez passar a existir diante do Estado e aos poucos as torna conscientes de seus direitos.” Conforme ressalta Alessandro, é evidente que bolsistas como ela ainda não exercem plenamente sua cidadania. “Mas o programa é de inclusão cidadã, a passagem para esse patamar mínimo para o cidadão.”
O pesquisador lembra outro aspecto importante: o programa praticamente se autofinancia com o aumento da arrecadação de impostos pelo aquecimento do consumo entre essa população. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que para cada R$ 1 investido – e não “gasto” no Bolsa Família, como realça – voltam para o estado R$ 0,73 em forma de arrecadação decorrente do impacto da transferência de renda na economia. E o benefício é sacado geralmente pelas mulheres, que têm o cartão magnético cadastrado em seu nome. “Algumas delas até brincaram com a possibilidade de os companheiros gastarem o dinheiro com cachaça, mas o verdadeiro motivo é que são elas que têm experiência para lidar com a casa e gastar bem o dinheiro curto”, lembra Walquiria.
Em geral, a bolsa tem permitido a compra de alimentos e materiais escolares. Mas há casos de realização de sonhos para muitos brasileiros, como poder comprar, pela primeira vez na vida, um pacote fechado de macarrão – no sertão é costume o comerciante abrir as embalagens e vender a granel – ou mesmo poupar. Há quem tenha relatado aos pesquisadores, com os olhos arregalados de contentamento, que tinha conseguido comprar colchões para toda a família, à vista, separando um pouquinho do dinheiro todo mês. “A gente não imagina o que é a extrema pobreza”, diz Walquiria. “O que pode parecer banal, como comprar ou trocar o colchão, para muitos é uma proeza, uma grande conquista. A realidade da pobreza é muito mais dramática do que nós podemos imaginar.”

Compra de votos

Italiano de Florença e professor da UFSC desde 2004, Alessandro se habituou ao argumento de que o Bolsa Família é um programa de cunho assistencialista e sobretudo eleitoreiro ao permitir a compra de votos das pessoas incluídas. Inconformado com o viés, elaborou seu próprio discurso. “Criar incentivos para a produção industrial, com isenções fiscais para empresas, também é um programa eleitoreiro. A diferença é que é aceito como legítima a compra dos votos do empresariado. O rico pode votar na defesa dos seus interesses. Por que o pobre não pode?”, questiona.
A resposta, conforme emenda Walquiria, está no modo carregado de crueldade com que a sociedade brasileira olha para a pobreza. “A origem está nos 300 anos de escravidão. Nenhuma sociedade fica imune a isso. Abolida a escravatura, o desafio é abolir a obra da escravidão e o que ela produziu em nós, nos interpelando não mais pela escravidão, mas pela pobreza.”
Em relação a eleições, outra mudança promovida pelo Bolsa Família nos sertões, conforme os pesquisadores, é a emancipação política. Percebendo prefeitos jovens em muitas reuniões, o que seria impossível anos atrás, quando os coronéis se revezavam no poder, questionaram as lideranças. A resposta: hoje há prefeitos de todos os partidos, porque o Bolsa Família “emancipou” o voto.
“O coronel agia nesse limiar da extrema pobreza e miséria, negociando alimentos, cesta básica. E a renda monetária, o dinheiro na mão, proporciona liberdade, autonomia. Dar cesta é dizer o que tem para comer. E a bolsa transformada em renda monetária regular traz a autonomia moral que permite à pessoa com renda, por mínima que seja, de programar a vida”, analisa Walquiria. “Essas pessoas, que passaram a vida toda sem saber se iam comer no amanhã, como animais, estão sendo humanizadas. Em vez de caçar, escolhem. Minimamente, é verdade, mas estão escolhendo. E a escolha é fundamental numa democracia.”

Mudança de vida

Essa mudança, segundo os autores, é que explica o discurso das personagens na abertura do texto. As novas Severinas, as filhas do Bolsa Família, já sonham em ser médicas, engenheiras. Um salto e tanto para quem nem sequer imaginava ter um futuro. E esse futuro já é realidade para muitas delas, que se não conseguiram mudar as próprias vidas, mudaram a de seus filhos. Como a moça bonita, loirinha, que há alguns meses pediu a palavra logo após uma palestra de Walquiria no campus de Santana do Livramento (RS) da Universidade Federal dos Pampas (Unipampa). “Num auditório lotado, 600 pessoas, ela enfrentou, sozinha, os ataques de um rapaz contra o programa: eu sou filha do Bolsa Família e entrei nesta universidade pública, onde estudo Relações Internacionais.”
Os pesquisadores ressaltam que essas histórias constituem exemplos isolados, de pouco ou nenhum peso estatístico. Mas não duvidam de que algo de muito importante está acontecendo e modificando o ciclo da pobreza em ­muitas ­famílias. Pela primeira vez, segundo eles, populações inteiras estão tendo o direito de pensar em futuro, num futuro diferente da vida das gerações anteriores.
Exatamente como a traduzida por Graciliano Ramos em Vidas Secas. Para o personagem Fabiano, assim como para o sertanejo, não havia nenhuma outra possibilidade de sonhar. Apenas uma sina. No entanto, em 11 de janeiro de 1930, quando era o prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, o próprio Graciliano escreveu num relatório: “Pobre povo sofredor. Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene” – entende-se por higiene qualidade de vida, hospitais, saneamento. Ou seja, o despertar para a cidadania dos mais pobres que coloca em risco interesses dominantes há séculos.
Desde que o Bolsa Família foi criado, 1,7 milhão de famílias se desligaram do benefício por terem superado a pobreza e conquistado renda maior e autossuficiência. Além disso, outras 1,1 milhão de famílias não atualizaram seus cadastros. Isso acontece com muita gente que melhora de renda e deixa o programa dessa forma, embora o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) não contabilize esse segundo número como saída voluntária. Por Cida de Oliveira, da RBA Foto: Arquivo Pe; Dijaci.

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