Assim como no Antigo Egito, os gatos são cultuados na Fazendinha, um bairro de dois mil barracos de madeira ou alvenaria na região da Brasilândia, zona norte de São Paulo. Mas diferentemente de lá, os "gatos" daqui atendem às preces dos moradores por garantirem sua necessidade mais básica: a água. Ela chega de uma adutora vizinha graças a pequenos canos de plástico que emergem e submergem do chão de terra até cada torneira e chuveiro improvisado no que as pessoas chamam de casa.
“Cada um faz do seu jeito. A Sabesp já veio muitas vezes, já mediu, já pegou nossos nomes. Mas nada aconteceu até agora”, diz a líder comunitária Maurete Gomes Pires, enquanto combate o efeito causado pela poeira das vielas ressecadas com um copo de água gelada – mais uma benfazeja dos "gatos". Só que, na Fazendinha, milagre tem limite: a água chega bem de manhãzinha, antes das sete, ou só depois das dez da noite. No resto do tempo as pessoas se viram com baldes. “Já estão acostumadas”, se conforma. O cheiro e a vista também mostram que o improviso não consegue resolver tudo: a pestilência é parte do dia a dia, e o esgoto corre entre portas e janelas serpenteando morro abaixo. As estatísticas mais recentes mostram que o saneamento básico é bastante precário no país, mas nem tanto na cidade de São Paulo. O último ranking do Instituto Trata Brasil – que anualmente classifica os cem maiores municípios brasileiros quanto a distribuição de água, coleta de esgoto e tratamento de efluentes – colocou a capital no 18° lugar. Não é o mundo ideal, porém a situação progrediu nos últimos dez anos. Menos na Fazendinha.
Aprovado pelos vereadores e sancionado pela prefeita Marta Suplicy, em 2002, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo determinou que até 2012 o poder público deveria prestar aos cidadãos um serviço de abastecimento de água melhor e mais regular – e atingir cada vez mais gente. Deveria também reduzir a quantidade de água que se perde em encanamentos velhos e ligações clandestinas, além de ampliar a coleta de esgoto e encaminhá-lo às estações de tratamento.
Avanços
Embora a cidade ainda não tenha universalizado um direito tão básico, e ainda haja paulistanos obrigados a conviver com córregos imundos e enfermiços ao alcance dos pés descalços, os objetivos previstos pelo plano diretor, em partes, foram cumpridos. “São Paulo está melhorando”, avalia Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil. “O grande desafio agora é aumentar o tratamento de esgoto e diminuir as perdas de água.”
“O que melhorou muito foi a coleta", continua Édison. "Em 2003, a Sabesp recolhia o esgoto de 87% dos domicílios paulistanos. Em 2010 passou para 96%.” A ideia da companhia é universalizar – nas áreas regularizadas – o recolhimento de esgoto em 2015, meta que o presidente do Instituto Trata Brasil acredita ser perfeitamente viável.
De acordo com os números da Sabesp, repassados anualmente para o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento Básico (SNIS) do Ministério das Cidades, a capital paulista praticamente universalizou a distribuição de água à população: os dados oficiais dizem que 100% das residências são atendidas pela rede. Não é de todo verdade, porque a 20 quilômetros da Praça da Sé uma parte da Brasilândia vive no século 21 como nos anos 1940. Mas a empresa tem lá suas desculpas: apenas as áreas de ocupação irregular são carentes do serviço. A Sabesp se diz impedida pelas legislações civil e ambiental de atuar em áreas cuja situação fundiária não esteja em ordem, e argumenta que está sujeita à fiscalização constante dos órgãos competentes. A Fazendinha, nascida de um golpe imobiliário que vendeu terrenos sem escritura, é um desses lugares. “Em janeiro entramos em contato com a prefeitura de São Paulo e fomos informados de que não é possível autorizar a implantação de redes de água e esgoto no local, por se tratar de um terreno particular”, informa a empresa.
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