Em Simões Filho-BA, local de desova dos grupos de extermínio na região metropolitana de Salvador, a taxa de homicídio de jovens negros é de 400 por 100 mil habitantes
Gleidson e Luciano. Dois meninos negros que cresceram juntos em Jaguaribe, na grande área de Cajazeiras, que com mais de 700 mil habitantes de baixa renda é quase outra cidade dentro de Salvador, capital da Bahia.
Gleidson, 20 anos, queria ser torneiro mecânico, já tinha feito um curso técnico e pretendia fazer outro. Vendia TV a cabo para ganhar a vida. A ambição era ter um bom emprego para sustentar a família que um dia iria formar, conta a tia. Luciano, 21 anos, também descrito por parentes como trabalhador e disciplinado, era Ogan de Oxossi (uma espécie de sacerdote no candomblé) no terreiro conduzido pelo pai de Gleidson, ali o babalorixá.
Há dois meses, no dia 13 de maio, ironicamente a data em que se celebra oficialmente o fim da escravidão, os dois amigos e vizinhos foram sequestrados em uma rua perto de suas casa por homens encapuzados que saíram de dois carros, um preto e um prata, e jogados no porta-malas. Por volta de 22h30, moradores vizinho à Estrada Velha do Aeroporto, alguns quilômetros adiante, ouviram tiros nas cercanias de um lugar de desova utilizado por grupos de extermínio. Foram sete disparos em cada um dos garotos, que se somaram às estatísticas de cerca de 20 jovens assassinados por final de semana em Salvador – e pouco mais de uma linha na notícia de jornal.
Os corpos de Luciano e Gleidson foram levados ao IML no início da madrugada do dia 14 de maio, terça-feira, e de manhã os familiares começaram a chegar. Há muita dor e revolta com a previsível impunidade dos assassinos. Não sem motivo, como se veria depois: os laudos cadavéricos, por exemplo, demoraram quatro meses para sair.
Ninguém quer conversar com estranhos, o medo e a desconfiança imperam nas famílias das vítimas. O marido da tia de Luciano foi sintético: “Não sei como foi. Só sei que eu perdi meu sobrinho, perdi alguém que amava muito”. A mãe, disse apenas que Luciano trabalhava e era um “menino de bem”.
Faltava documentação para consumar o reconhecimento dos dois e os legistas do IML trabalham só até às 16 horas. Um princípio de incêndio encerrou o expediente mais cedo e as famílias partiram sem os corpos dos meninos.
O IML Nina Rodrigues tem esse nome em homenagem a um médico adepto da teoria lombrosiana, tristemente célebre na América Latina pela famigerada afirmação de que o cérebro do negro é inferior ao do branco. Nina Rodrigues também defendeu a esterilização para aperfeiçoamento da espécie humana como método de prevenção do crime.
Só na tarde de quarta-feira o corpo de Gleidson foi para o Bosque da Paz, o cemitério perto de seu bairro. A família de Luciano teve que fazer o enterro na quinta-feira, porque não tinha vaga no Cemitério Municipal de Brotas.
Depois de tanta espera, o velório não durou mais de meia hora. Todo dia tem muitos enterros e a capela é minúscula. A chuva intermitente contribuía para o clima tenso. Uma criança foi velada antes e a família se abrigou debaixo da única árvore do cemitério, praticamente um matagal abandonado.
Do lado de fora, policiais com fuzis paravam motos e carros para uma blitz. Um grupo que fumava crack nos fundos do cemitério decidiu sair dali, assim como uma senhorinha à procura de um bico para garantir o alimento do dia.
Os primos de Luciano, os amigos, os irmãos de terreiro têm o olhar e os punhos fechados. O silêncio é uma maneira de proteger a dignidade das vítimas, ameaçada pela acusação que pesa contra os que são assassinados pela polícia. Alguma ele fez, temem ouvir dos vizinhos.
Luciano era filho de santo e pelas leis do candomblé tem que voltar para o chão, devolver a terra emprestada por Oxalá para dar vida e forma ao homem. Não pode ser enterrado em carneiro (cemitério vertical, com gavetas). Os cantos em yorubá do ritual de despedida, reservado apenas aos irmãos do candomblé, são ouvidos do lado de fora da minúscula capela.
No cortejo até a cova, a irmã mais nova do rapaz e a mãe não contêm o desespero. Algumas flores e uma coroa feita com papel e plástico, com uma oração católica, adornam tristemente o caixão que desce à terra novamente acompanhado pelos cantos aos orixás, especialmente a Oxossi, o guardião do jovem, para que apesar da morte bruta sua alma encontre um caminho de paz.
A história do menino Luciano acabou em um epitáfio sem nome, identificado apenas como o C 48 QE do Cemitério de Brotas.
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