Ataques da última semana tem como pano de fundo reversão de processo de concessão ao setor privado e proposta de permissionários para transição que comece em cem anos.
O clima de tensão na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) continua após o atentado da última sexta-feira (14), ocasião em que um grupo de 10 a 20 homens causou tumulto entre os trabalhadores, incendiou prédios administrativos, danificou câmeras de segurança e destruíram equipamentos de cobrança de estacionamento e controle de entrada e saída.
Esta é a segunda vez que a cobrança para entrada e permanência de caminhões serviu como estopim de protestos: a primeira, em março de 2012, provocou tumultos de menor intensidade, mas conseguiu adiar a instalação do sistema. Desta vez, no entanto, com incêndios direcionados a prédios onde estão arquivados contratos com os permissionários, os conflitos ganham contorno político e marcam nova etapa de uma disputa entre público e privado que corre no seio da estatal desde 1997, quando o órgão foi entregue pelo então governador Mario Covas (PSDB, 1995-2001) ao governo federal para renegociar a dívida do estado e dar início a sua privatização, processo parado desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002).
A perspectiva de que novos atentados possam ocorrer contra a administração da Ceagesp está vinculada a dois processos políticos em andamento: no âmbito federal, a central já cumpriu todo o ritual burocrático e só depende de um decreto da presidenta Dilma Rousseff para poder deixar o Programa Nacional de Desestatização, no qual está incluída desde 1999. As estatais incluídas no programa pré-privatização criado por FHC não podem receber investimento direto da União nem realizar empréstimos, o que fragiliza o poder de gestão da Ceagesp. O setor jurídico do entreposto afirma já ter encaminhado toda a papelada necessária a Brasília para consumar a transição e espera estar fora da lista de “privatizáveis” até julho deste ano.
Ao mesmo tempo, a Ceagesp prepara um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público para rever cerca de 2,7 mil contratos de permissão de uso dos boxes comerciais no entreposto. Os contratos em vigência, formulados em plena ditadura (1964-85), na década de 1960, foram adquiridos sem concorrência pública e têm validade indefinida, o que criou um emaranhado de transmissão por hereditariedade e negociação de contratos de gaveta no mercado paralelo, sem qualquer fiscalização. Os valores de aluguel previstos nesses documentos variam de acordo com o tamanho do box, mas chegam a R$ 3 mil mensais, muito abaixo do preço médio praticado na capital paulista.
Ambas ações, que começam a reverter uma situação em que o poder público tem poder de fogo insuficiente para regular as atividades privadas (o comércio movimenta cerca de R$ 8 bilhões por ano na Ceagesp, mas a arrecadação do órgão, entre aluguéis e rateio de serviços, não chega a R$ 100 milhões por ano), são vistas pela direção do entreposto como possíveis agravantes dos conflitos. “Na última vez que tivemos protestos, há uns dois anos, os comerciantes baixaram os portões com medo de depredações. Desta vez, continuaram funcionando normalmente”, observa Mário Maurici, presidente da Ceagesp desde 2009, ressaltando que a suspeita de que uma parcela dos permissionários poderia estar previamente informada das ações violentas daquele dia ainda carece de confirmação da Polícia Civil, que recebeu as imagens das câmeras de segurança para identificar os autores do ataque. As associações que representam os permissionários negam envolvimento com atos violentos.
“Aqui há muitas questões, é uma situação muito complexa. Um exemplo: os carregadores recebem o pagamento dos produtores, mas quem intermedia são os comerciantes. Eles, claro, tiram uma parte; eventualmente, a maior parte. Essa é uma questão dos trabalhadores que terá de ser resolvida”, conta. “Por outro lado, temos os conflitos de interesse aqui dentro, a concorrência entre os próprios comerciantes, a disputa entre nós e quem quer utilizar este espaço para atividades particulares, até criminosas.”
Desde maio de 2013, o Ministério Público e a Ceagesp buscam uma forma de coibir os recorrentes casos de trabalho e prostituição infantil nas dependências do entreposto, uma vez que a Polícia Militar se recusa a atuar no interior do entreposto por conta da identidade jurídica do órgão, que é privada. A Ceagesp conta com 70 guardas patrimoniais próprios, além do apoio de seguranças particulares pagos em rateio pelos comerciantes. “A verdade é que somos, hoje, um órgão muito vulnerável”, alerta Maurici.
E, como resultado das ações da última sexta-feira, a segurança da Ceagesp pode ficar ainda mais fragilizada: 96% da arrecadação com o estacionamento era direcionada à manutenção das câmeras de segurança e da central de monitoramento criada neste ano. Com a previsão de que a cobrança não poderá ser realizada por meses, a Ceagesp busca uma forma de reequilibrar o contrato e conseguir pagar os prestadores de serviços. Caso contrário, as atividades podem ser interrompidas.
Na arena do debate político e judicial, o enfrentamento principal da direção da Ceagesp tem sido com as entidades patronais que representam parte dos permissionários: a Associação dos Permissionários (Apesp) e o Sindicato dos Permissionários em Centrais de Abastecimento do Estado de São Paulo (Sincaesp), que, embora tenham natureza distinta, atuam juntas e compartilham quadros. Aqui, a discussão ganha, também, cores partidárias: enquanto os principais diretores da Ceagesp são do PT, lideranças ligadas ao PSDB são predominantes no sindicato patronal. O vice-presidente do Sincaesp, Cláudio Furquim, já foi candidato a deputado estadual pelo partido, e o responsável pela organização dos permissionários na entidade, embora não esteja no quadro de diretores do sindicato, é José Roberto Graziano, irmão de Xico Graziano (PSDB), ex-deputado federal e secretário estadual de Agricultura de Covas em 1997, quando a empresa foi entregue ao governo federal.
Embora as entidades não tenham se manifestado publicamente sobre a retirada da Ceagesp do Programa Nacional de Desestatização, na semana anterior aos atos violentos no entreposto, uma reunião entre associação, sindicato e uma construtora teria discutido a abertura de um entreposto de abastecimento privado, cujo objetivo seria substituir a Ceagesp – hoje, diversos comerciantes já mantêm armazéns do lado de fora do entreposto, onde realizam parte de suas operações. A construtora foi procurada para confirmar a realização da reunião, mas não respondeu à RBA até a publicação desta reportagem.
Já no fronte da revisão do modelo de contrato de permissão de uso dos boxes, as entidades de classe, representadas pelo advogado Rafael Pinto de Moura Cajueiro, tentam atrasar ao máximo a transição dos contratos para um novo modelo, para o qual teria de haver licitação. Enquanto a Ceagesp discute com o Ministério Público um período de até 20 anos para realizar a concorrência pública pelos boxes, o sindicato pede 50 anos, renováveis por mais 50 – o que poderia deixar para o ano de 2114 a primeira licitação por um box no entreposto de alimentos da história do estado de São Paulo.
“Tomamos essa posição para negociar, é claro. De minha parte, acredito que um período de até 30 anos seria suficiente, mas é um chute”, afirma Cajueiro. “O problema é que o Ministério Público só discute com a Ceagesp, e não conosco. Por que não? Nós queremos tempo para que os permissionários possam receber uma amortização pelos investimentos que fizeram do próprio bolso em seus ramos produtivos ao longo desses anos, sem ajuda da Ceagesp”, explica, reafirmando que, para calcular o valor dessa indenização pelos últimos 50 anos de contratos, seria necessário um estudo técnico sobre o assunto.
O único ponto em que sindicatos patronais e Ceagesp têm consenso é que a ausência de regulamentação federal específica para os entrepostos de abastecimento e para a produção de hortifruti prejudica a aplicação de políticas públicas para a área. “Não temos marco legal, não temos diretrizes gerais de atuação, e essa não é uma questão de São Paulo. Cada entreposto em cada estado do Brasil é administrado de um jeito diferente, mas isso não pode continuar assim”, afirma Maurici. “Ou será que o cidadão prefere não saber direito de onde vem o seu alimento, ou por que tipo de controle de qualidade ele passou antes de ser distribuído?”. Por Diego Sartorato, da RBA