O Brasil teve a oportunidade de experimentar por três décadas a construção de um sistema universal de saúde baseado na ideia de que esse é um direito de todos e um dever do Estado. Mas, após três anos de um golpe parlamentar que em 31 de agosto destituiu definitivamente Dilma Rousseff da Presidência da República, essa construção corre grave risco e pode levar o país a uma situação de barbárie social.
Ministro da Saúde do segundo governo Dilma, entre 2014 e 2015, o médico Arthur Chioro lembra que o Brasil foi o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou colocar na Constituição, em 1988, esse direito, com a criação do Sistema Único de Saúde.
“Entre 2003 e 2015 tivemos a oportunidade de viver esse processo de expansão, com cobertura de mais de 70% da atenção básica em saúde”, diz, lembrando programas como o Saúde da Família, o Mais Médicos. “Setenta e três milhões de brasileiros que viviam em condições mais adversas, nas periferias das grandes cidades, região semiárida, na região Amazônica, aldeias indígenas, assentamentos, nunca tinham tido contato com uma equipe completa.”
Obras dos governos petistas, a expansão da atenção básica coincidiu com a ampliação da assistência farmacêutica, a criação de programas como o Brasil Sorridente (odontológico), a implantação dos serviços de Samu, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, em todo o Brasil.
“O resultado concreto é que, graças ao SUS, o brasileiro vive mais, houve diminuição da mortalidade infantil e materna, da mortalidade por causas evitáveis. Se o brasileiro vive mais e melhor, ele deve fundamentalmente à criação de um sistema universal, para todos”, avalia Chioro.
Mas, uma das primeiras áreas atingidas pelo golpe, a saúde acabou vendo sua evolução orçamentária paralisada pela Emenda Constitucional 95. Promulgada pelo Congresso Nacional quatro meses após a destituição da presidenta Dilma, a emenda conhecida como PEC da Morte estabeleceu um teto de gastos válidos por 20 anos.
Com isso, o montante que vinha tendo aumentos mais ou menos expressivos desde 2004 – cresceu 18,54%, em 2012 – chegou a 2019 com um ínfimo acréscimo de 0,23%. A situação deve piorar muito e continuamente até o ano de 2036, segundo estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). A projeção do orçamento para o setor, sob a barreira do teto de gastos, indica perda que deve chegar a R$ 1 trilhão até 2036, em relação ao que seria investido na saúde de acordo com o previsto pela Constituição Federal.
“E o que é mais perverso é que tanto o governo Temer como o governo Bolsonaro têm utilizado a ‘sobra’ de recursos obtida pela fragilização de programas como a Farmácia Popular, pelo não cumprimento dos gastos previstos no programa Mais Médicos, pela diminuição da oferta de vacinas e medicamentos de alto custo, exatamente para fazer pagamento de emendas parlamentares com as quais têm sido literalmente compradas as reformas trabalhista e da Previdência”, denuncia Chioro.
“E a gente ainda é obrigado a ouvir o discurso de que a relação com o Congresso mudou e o governo Bolsonaro não faz a política do ‘toma lá e dá cá’. É literalmente uma política do ‘tira da população brasileira’ para honrar o processo de desmontagem da estrutura de proteção social que esse país construiu ao longo de décadas”, critica o médico sanitarista.
A Emenda Constitucional 95 é tão absurda que quanto maior o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, maior a perda de recursos para cuidar da saúde da população. Pela regra anterior ao teto de gastos, a saúde seguiria correspondendo sempre a 15% do orçamento geral. Mas com o teto, se o PIB tiver crescimento, os investimentos em saúde não acompanham, porque a lei prevê a correção do orçamento no máximo pela inflação.
A mesma situação ocorre com o investimento per capita em saúde. Nos governos petistas, o Brasil avançou de um investimento em saúde por pessoa de aproximadamente R$ 420, em 2008, para R$ 519, em 2016. A projeção do Ipea indica que chegaríamos a 2025 com R$ 632 per capita, e em 2036 com R$ 822. Mas o teto de gastos impede essa evolução e vai fazer o país reduzir o gasto per capita em saúde para R$ 411 em 2036. Menos do que era investido em 2008.
Os programas de atendimento à população mais pobre estão entre os mais atingidos. Após 16 anos de expansão contínua, a Estratégia Saúde da Família (ESF), modelo de atendimento que a equipe de saúde vai à casa das pessoas e atua de forma territorializada, teve sua primeira redução de atendimento. Em 2019, o ESF perdeu 836 equipes, deixando de atender 2,2 milhões de pessoas. A equipe completa, mencionada pelo ex-ministro Chioro, é multiprofissional, composta por médico e enfermeiro especialista em saúde da família, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS).
“Estudo publicado em 2018 já antecipava o impacto que a EC 95 teria sobre municípios e estados. Mantida a ordem das coisas, chegaremos em 2022 com estados e municípios tendo de honrar, para manter a atual rede existente, 70% dos gastos com saúde e isso é impossível”, relata o ex-ministro. “O que nós já estamos observando é progressivamente a incapacidade de manutenção da operação cotidiana do sistema de saúde.”
A destruição do programa Mais Médicos, cujos profissionais cubanos deixaram os locais de trabalho no final de 2018, após uma série de ataques e mentiras difundidas pelo presidente Jair Bolsonaro, é um exemplo desse descaso. Cerca de 28 milhões de pessoas ficaram sem atendimento após a saída dos 8.476 médicos cubanos de 1.575 cidades. Locais esses que passaram a não ter nenhum médico, já que brasileiros não aceitaram ir para esses municípios nos editais abertos posteriormente.
“Os governos Temer e Bolsonaro entregam aquela receita do Banco Mundial, do Consenso de Washington que tinha sido desenhada 1993. No caso da saúde era uma medicina pobre para os pobres. Ao invés de uma atenção primária de qualidade, uma atenção primitiva”, compara.
Para Chioro, a volta do surto de sarampo tem a ver com a incapacidade do Estado brasileiro. “Não tem nada a ver com a Venezuela, com diz o governo. Mas com a vergonhosa postura do Ministério da Saúde de não coordenar as ações necessárias de enfrentamento da circulação do vírus do sarampo.”
Quando era ministro, lembra o médico, o Brasil viveu situação parecida, mas com desfecho completamente diferente. A visita de estrangeiros não vacinados ao país reintroduziu o sarampo no Recife e em Fortaleza. “Num esforço muito grande, envolvendo o governo federal, estados e municípios, nós tivemos capacidade de enfrentar e resolver o problema”, afirma.
“Temos hoje mais de 2 mil casos de sarampo, óbitos acontecendo, de uma doença da qual tínhamos obtido o certificado de erradicação. É um exemplo da recrudescência, da reemergência de problemas que estão diretamente relacionados à falta de investimento, à desmontagem do SUS, à desorganização, ainda que o discurso seja de ficar colocando a culpa no passado. Uma postura irresponsável porque fragiliza e coloca em situação de altíssima vulnerabilidade toda população brasileira”, ressalta Chioro.
O ex-ministro da Saúde explica que o SUS sempre enfrentou a situação de subfinanciamento, ou seja, de ter menos recursos do que necessita. “Desde a instauração do golpe podemos afirmar que vivemos uma situação de desfinanciamento”, compara.
“É de uma perversidade inaceitável”, lamenta. “Mas na lógica desses liberais conservadores que instalam uma nova ordem no país a partir do golpe, a diminuição dos gastos públicos objetiva aumentar os lucros do sistema financeiro e aumentar o percentual da população brasileira que terá de buscar no mercado o provimento de suas necessidades.”
Chioro afirma que mesmo países capitalistas – como Canadá, Reino Unido, Itália, Espanha, França, países escandinavos – reconheceram ao longo da história que o Estado tem papel fundamental no atendimento à saúde. “Aqui se pretende fazer o mesmo caminho desastroso que os Estados Unidos, Chile, Colômbia fizeram. E demonstram com indicadores péssimos, com incapacidade de atender às necessidades das pessoas, um caminho de transformar de vez a saúde em mercadoria.”
Assim, avisa o médico, o país caminha para a barbárie. Em um contexto de recessão econômica, de perda dos contratos formais de trabalho que permitiam acesso aos planos coletivos de saúde, não haverá capacidade financeira da população para o pagamento dos serviços de saúde. “Toda essa situação condenará milhões e milhões de brasileiros à desassistência”, avalia. “Por isso, tenho uma convicção baseada em evidências, estudos que vêm sendo feitos não só por nós da Unifesp, mas por pesquisadores em todo o país, de que nós caminhamos aceleradamente para uma situação de barbárie com a desmontagem das políticas públicas, entre elas a do Sistema Único de Saúde.” Por Rodrigo Gomes e Cláudia Motta, da RBA. (Editado).