A crise econômica e a ausência de políticas públicas eficientes de proteção social impactam principalmente as mulheres, responsáveis, na maioria das vezes, pelo cuidado com a família. Quando, em nome da austeridade fiscal, programas sociais sofrem cortes ou são suspensos, a crise assume uma face ainda mais cruel para as mulheres que necessitam desse apoio: as mais pobres. São elas que lutam para evitar que a fome se instale dentro de casa ou, pelo menos, tentam amenizá-la.
“As mulheres desempenham papel de protagonista, dadas as nossas constituições familiares. Muitas vezes, nos domicílios em que domina a pobreza ou a extrema pobreza, a mulher – e mãe – é a chefe da casa e não tem um companheiro. Em outros casos, a avó também cumpre esse papel. E, se existe um quadro de extrema pobreza, aquela família frequentemente vive uma situação de fome”, afirma o pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) Francisco Menezes, especialista no tema de pobreza e desigualdade.
Desde 2017, em meio ao agravamento da crise econômica, Menezes deu o alerta de que o Brasil corria sérios riscos de voltar ao Mapa da Fome, do qual saíra em 2014. Um país entra no Mapa da Fome, das Nações Unidas, quando 5% ou mais da sua população vivem em situação de insegurança alimentar. Em 2014, o percentual no Brasil caíra para 3,5%.
“A recessão e o desemprego pioram ainda mais as condições de vida para a população mais carente. Nesse cenário, programas sociais deveriam ter sido ampliados, mas isso não aconteceu. Pelo contrário: prevaleceu a política de austeridade e, ainda assim, o Brasil estourou o teto de gastos [públicos]”, completa Lena Lavinas, doutora em economia pela Universidade de Paris e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os números da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), do IBGE, divulgados em fins de 2018, mostram que, entre 2016 e 2017, a proporção de pessoas pobres no Brasil subiu de 25,7% para 26,5% da população: um aumento de 2 milhões. Já o contingente dos extremamente pobres cresceu de 6,6% da população em 2016 para 7,4% em 2017, passando de 13,5 milhões para 15,2 milhões. Pela definição do Banco Mundial, são extremamente pobres os que têm renda inferior a US$ 1,90 por dia, ou R$ 140 por mês aproximadamente.
Insegurança alimentar
No estado do Rio, pelo menos um em cada seis domicílios vive um quadro de insegurança alimentar grave. Ou seja, seus moradores não têm acesso aos alimentos na quantidade necessária, de acordo com dados divulgados em 2014, da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). Diante da escassez, muitas vezes é a mulher que se encarrega de levar o alimento para casa.
“A mulher tem muito mais iniciativa do que o homem e, nesse contexto, busca alternativas, até no vizinho se for preciso, e recorre a uma rede de solidariedade social. E esse apoio vem de várias formas, não só de instituições de caridade, mas de parentes, da igreja”, afirma Menezes.
“O Estado brasileiro tem falhado em reconhecer o papel da mulher como um arrimo mais eficiente. A diferença entre as rendas do trabalho para homens e mulheres é grande e o Estado tenta compensar isso, mas falha. Existe uma rede de proteção social, de Bolsa Família e de outros benefícios sociais, mas eles não são suficientes para reverter a situação de desigualdade”, afirma Marcelo Neri, diretor do FGV Social, da Fundação Getulio Vargas, e maior think tank de políticas sociais da América Latina.
“A meta do milênio era reduzir à metade a extrema pobreza entre 1990 e 2015. Em 25 anos, ela caiu 73% no Brasil. De 2015 para cá, no entanto, cresceu 40%, mesmo com a redução dos preços dos alimentos”, sentencia Neri, acrescentando que, de 2015 a 2017, o Brasil registrou mais 6 milhões de novos pobres, que ganham até R$ 233 per capita por mês, segundo a FGV Social.
Cortes são arbitrários e ameaçam autonomia recém-conquistada, diz pesquisadora
Desde 2016, a socióloga Walquíria Leão Rêgo, professora titular de ciências políticas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, tem se dedicado a pesquisas com mulheres no sertão de Alagoas e Ceará. Em entrevistas, ela registra a realidade de mulheres que com o programa Bolsa Família assumiram o protagonismo nos seus lares e agora veem sua sobrevivência ameaçada. Ao longo dos anos, registrou como muitas ganharam autonomia, já que são elas as recipientes do programa.
Agora, ela diz que essas conquistas estão ameaçadas. “O aprofundamento dos cortes no Bolsa Família não apenas reduzirá a autonomia dessas mulheres, mas compromete a própria vida delas e das crianças. Um verdadeiro genocídio. Principalmente para as mulheres no sertão que não têm outra opção”, diz Walquiria.
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A Pública