Qual a idade mínima para colocar alguém na cadeia? Longe de ser inédita, essa questão é recorrente pelo mundo e toca diretamente a passionalidade dos envolvidos. No Brasil, costuma surgir no horizonte com certa regularidade para permanecer em voga por apenas alguns dias – suscitado sempre que um crime grave é praticado por um adolescente que, por força da legislação local, não pode ser responsabilizado judicialmente.
Dessa vez, duas tragédias sequenciais levantaram o debate. A primeira, no dia 10 de abril. Um estudante universitário de 19 anos, chamado Victor Hugo Deppman, foi morto com um tiro na cabeça, durante um assalto na porta de sua casa, em São Paulo. Toda a ação foi registrada por uma câmera de segurança fixada na entrada do condomínio onde o jovem morava. Por meio das imagens, foi possível identificar o autor do disparo, que tratou de se entregar à polícia um dia depois, horas antes de completar 18 anos, idade em que abandona a condição de inimputável e passa a responder à Justiça por seus atos como cidadão adulto.
A coincidência entre a data do crime e o dia do aniversário do atirador confesso é tamanha que parece obra de força oculta para reaquecer a polêmica. Alguns dias depois do ocorrido, o governador paulista Geraldo Alckmin viajou até Brasília para entregar uma proposta de alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao parlamento federal. A proposta pede elevação de três para dez anos o tempo de internação dos casos mais graves. Também sugere a transferência do infrator da unidade de internação para uma cadeia comum após ele alcançar a maioridade (hoje, quando o infrator completa 18 anos antes do término da internação, ele permanece com os demais adolescentes no reformatório).
Alckmin só não explica como absorver o impacto da reforma proposta no já superlotado sistema prisional brasileiro, incluindo aí as cadeias administradas pelo próprio governador. Mas o fato é que, por clamor popular, o assunto entrou na pauta do Congresso, uma coalizão de partidos da base do governo e até da oposição correu para jogar panos quentes e abafar a história e, quando aconteceu do segundo crime envolvendo um menor de idade voltar a chocar a opinião pública, já se ouvia vozes dissonantes sobre a convocação de um plebiscito para consultar a população sobre a redução ou não da maioridade penal.
Esse segundo crime aconteceu quinze dias depois do assassinato do estudante de 19 anos. A dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, de 47 anos, surpreende-se com a invasão de um grupo em seu consultório, na cidade de São Bernardo do Campo. Eles queriamdinheiro, mas ela não tinha. Foi quando, frustrados em sua tentativa de assalto mal sucedido, tiveram uma atitude cruel, jogaram álcool em Cinthya e atearam fogo na sequência. A dentista não resistiu aos ferimentos e morreu no local. O grupo fugiu. Mas, deixaram um rastro: novamente foram flagrados pelo circuito fechado de TV.
Em três dias estavam todos presos. Entre os suspeitos, um rapaz de 24 anos, outro de 21 anos e, novamente, um menor, novamente com 17 anos, novamente réu confesso. Segundo a delegada encarregada de colher os depoimentos, Elisabete Sato, diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), ele afirmou ter sido o responsável por atear o fogo no corpo da dentista.
Clamor popular
Um bom termômetro do que pensa o brasileiro sobre o tema pode ser encontrado em uma pesquisa realizada sobre o assunto na segunda quinzena de abril, em São Paulo, pelo instituto Datafolha. O resultado indica que, se convocado um plebiscito e os rumos da decisão dependessem dos paulistanos, a maioridade penal seria reduzida dos atuais 18 para 16 anos sem maiores problemas. Cerca de 90% dos entrevistados disseram-se favoráveis à mudança.
Mas embora o dado realmente registre a opinião popular no momento, a perceção sobre o assunto é, segundo especialistas no assunto, eclipsada pela repercussão de fatos recentes. Para o jurista Túlio Vianna, professor da faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a "racionalidade e a temperança que deveriam guiar a elaboração de qualquer projeto de lei cedem espaço à passionalidade do clamor público no furor dos acontecimentos". Trocando em miúdos, ele defende a velha teoria de que é preciso certo distanciamento histórico para analisar os fatos sem paixões.
Como contraponto aos acontecimentos chocantes, o jurista apresenta, em artigo recentemente divulgado pelo jornal O Estado de São Paulo, um levantamento realizado na Vara Infracional da Infância e da Juventude de Belo Horizonte. Dos crimes praticados por adolescentes na cidade mineira em 2010, apenas 0,3% foram homicídios, aponta Vianna. A maioria das ocorrências, diz ele, é por tráfico de drogas (27,2%), seguido pelo uso de drogas (18,5%), furto (10,7%) e roubo (7,7%).
A conclusão de Vianna é que os projetos de redução da maioridade penal tem como público-alvo o adolescente pobre que pratica crimes patrimoniais ou de tráfico e uso de drogas. "Desses adolescentes, 62% vivem em lares com renda familiar inferior a dois salários mínimos. É esse adolescente marginalizado que a sociedade brasileira quer colocar no cárcere, já que nosso poder público em sua incompetência não cumpriu seu dever constitucional de colocá-los nas escolas", acusa.
É compreensível soar para alguns como maluquice a defesa de jovens de 16, 17 anos, sendo que alguns deles conseguem meter uma bala na cabeça de outra pessoa de uma hora para outra ou atear fogo em uma mulher por ela não portar uma cifra que satisfaça bandidos empenhados em obter um retorno financeiro custe o que custar.
No entanto, é difícil não pensar duas vezes após o convite de Túlio Vianna, que pede projetar o assunto em perspetiva. Como vão reagir as pessoas que pedem pela redução da maioridade penal amanhã, quando os filhos estiverem na cadeia por conta de uma briga na rua na saída da escola, ou por insultos a professores, problemas como direitos autorais na internet – todos esses, crimes que levam (ou pelo menos deveriam levar) homens feitos para a prisão?
Tocar na questão da maioridade penal é cutucar no vespeiro da passionalidade.