Existem questões que resistem teimosamente ao assédio das palavras, como se a realidade houvesse decidido que nenhum pensamento, nenhuma razão poderia medir-se com os desatinos pelos quais elas insistem em desmentir o conjunto das inteligências e de seus planos.
E, aparentemente, poucas seriam as pessoas a recusar à questão palestina uma tal classificação.
Afinal, o que resta a dizer sobre o confronto entre israelenses e palestinos, o que não foi dito ainda que possa mudar uma vírgula que seja nas atas desse dossiê sangrento, redigido pelas mãos raivosas e descontroladas de ambas as “nações”, entregues a um incessante e insensato trabalho de rasurar as palavras alheias (como talvez tenhamos nos acostumado a imaginar essa perpétua troca de hostilidades)?
Se o braço palestino não fosse assim tão indisciplinado, se ao menos ele soubesse conter-se, permanecer quieto, sem provocar o seu irmão judeu, sem desferir-lhe golpes inopinados, talvez houvesse paz, e então o telejornal seria mais ameno, talvez se tornasse mesmo um pouco menos desagradável ao olhar e à conversa.
Como não desejar que os palestinos finalmente se submetam, que eles reconheçam de uma vez por todas e plenamente a legitimidade do Estado democrático de direito de Israel, renunciando decisivamente aos meios ofertados pelo terrorismo?
E, tão próxima, tentando equilibrar-se na corda-bamba dos assentimentos mútuos, a paz entretanto nunca chega; ligamos a tevê e, sem que sejamos realmente surpreendidos – tamanha a insensibilidade a que nos sujeita esse bombardeio de notícias sobre bombardeios –, ouvimos falar de três jovens israelenses sequestrados e mortos por terroristas palestinos.
Após, a Lei de Talião, traduzida numa ofensiva desaprovada pela ONU, mas que, ao mesmo tempo, não deixa de ter o seu aval, afinal, uma vez mais os palestinos optaram pela violência, e a Israel coube apenas revidar.
Importa realmente que as investidas militares dos israelenses tenham sido responsáveis pelas mortes de mais de 500 palestinos, em clara desproporção com os três judeus assassinados, ato isolado e sem qualquer relação real com a totalidade da população da faixa de Gaza?
E, em meio a semelhantes insignificâncias, decerto o fato de os palestinos da faixa de Gaza, o alvo dos recentes bombardeios, não contarem nem com um Estado e nem com um exército, e portanto não disporem de qualquer meio para efetuar um contra-ataque, não acrescenta em nada à discussão.
Ora, a função do governo de Israel é zelar pela segurança de seus cidadãos, e para tanto não se pode medir esforços.
Ou melhor, esta é exatamente a medida com que o governo de Israel aquilata todos os seus “esforços de guerra”, antecipando-se às cifras das baixas palestinas, dando-lhes em troca, como se em perfeita equivalência, a certeza de que os israelenses podem dormir tranquilamente à noite: segurança extorquida pelo horror infligido a seus adversários, tudo é permitido para garantir o bem-estar dos israelenses, e a negociação deixa-se absorver pelo cálculo das violências necessárias à sua consecução, tanto mais eficaz quanto mais sujeitos ao arbítrio israelense estiverem os palestinos (neste sentido, o controle da faixa de Gaza pelo governo de Israel é exemplar, limitando o seu acesso a bens e serviços básicos ao mínimo necessário à sobrevivência, e restringindo inclusive a ajuda humanitária, não importando a procedência dos grupos que se prontificam a realizá-la).
É quase como se, na Palestina sitiada, pudesse-se ouvir, do alto das caixas de som (lembrança ingrata?), que, se um terrorista palestino ainda vive, a nação palestina não merece viver. Ou pelo menos esse tem sido o fundamento da [ausência de] negociação levada adiante por Israel.
Reatualizando a semântica das guerras mais brutais, há muito Israel espera por uma rendição incondicional ou por uma aniquilação total (o que vier primeiro) – neste caso, nem tanto o produto de uma guerra interminável, posto tratarem-se de forças manifestamente dissimétricas (não cabendo uma denominação deste quilate quando há apenas um exército na lide), mas sim de uma pacificação perpétua (caricatura nefasta da solução kantiana para uma espécie de concerto das nações).
Melhor seria dizer, uma negociação incondicional, se é questão de desvelar o paradoxo que sustenta a lógica militarista e ocupacionalista de Israel: como bem sintetizou Alain Gresh, “o que é meu é meu; o que é seu, nós podemos negociar”, essa a sua [des]razão de Estado (o artigo deste autor, “o que é meu é meu; o que é seu, nós podemos negociar”, disponível no site do Le monde diplomatique Brasil, fala justamente das sucessivas recusas de Israel à negociação, numa verdadeira sabotagem do processo de paz com os palestinos).
Israel inventou assim uma nova tecnologia de governo das populações indesejáveis, recriando a lógica do menor dos males necessários, segundo a qual seria lícito recorrer a certos meios ilícitos para assegurar um bem maior: para evitar a violência contra os nossos, apliquemo-nos a exercer uma violência calculada e dirigida contra os potenciais inimigos, sendo portanto absolutamente necessário que estes, como sinal de boa fé, entreguem-se voluntariamente a essa violência mínima, de indefinido controle e repressão (de outra forma, deverão ser aniquilados; por contraposição, o “mínimo”).
Os israelenses, assim como todos os observadores dessa monstruosidade, deveriam começar a desconfiar dessa lógica, como aliás o fez uma célebre pensadora judia, Hannah Arendt: “Politicamente, a fraqueza do argumento tem sido sempre a de que aqueles que escolhem o menor dos males esquecem-se muito rapidamente que escolheram um mal”.
E talvez conviesse lembrar ainda que, como um outro pensador judeu, Baruch de Spinoza, soube distinguir muito bem, a paz não é a mera ausência da guerra. Assim, quem sabe, um pouco de razão poderá tornar à questão.
(Por Ivan de Oliveira Vaz, graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP))
Créditos: Viomundo
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