O Brasil enfrenta neste domingo o desafio de superar um golpe sem armas. "Levar adiante esse processo é promover um golpe de Estado sem armas, fundado apenas em retórica jurídica incompreensível aos olhos da quase totalidade dos cidadãos. Se a Câmara respeitar a Constituição, não haverá impeachment", diz o ministro José Eduardo Cardozo, da Advocacia-Geral da União. Confira abaixo:
Por José Eduardo Cardozo
Quando a nossa ordem jurídica afirma que são crimes de responsabilidade os "atos do presidente da República que atentem contra a Constituição", faz um claro reconhecimento da excepcionalidade das hipóteses de afastamento do chefe da nação. No presidencialismo, ao contrário do parlamentarismo, a perda do mandato só pode se dar em casos graves e marcados por provada má-fé presidencial.
"Atentar" contra a Constituição significa violentá-la brutalmente, de forma induvidosa e injustificada. Nada disso se aplica à presidente Dilma Rousseff. Uma mulher honrada e digna, sobre quem não pesa um ato ilícito sequer.
Apenas duas acusações frágeis lhe são dirigidas. A edição de seis decretos de créditos suplementares que teriam contrariado metas fiscais e o atraso no repasse de subvenções da União ao Banco do Brasil para execução do Plano Safra, em 2015. Neste último, acusam a presidente de simular uma operação de crédito, vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. No entanto, este plano de custeio do agronegócio é gerido diretamente pelo ministro da Fazenda, não existindo qualquer ato jurídico praticado pela Presidência da República.
As denúncias não se sustentam. Um decreto que abre crédito suplementar apenas rearranja gastos dentro do próprio orçamento e jamais ferirá metas fiscais. Além disso, houve uma lei que ajustou essas metas à situação econômica. E foi isso o que o governo fez. Baixou decretos tanto para remanejar o orçamento quanto para contingenciar gastos. Cumpriu as metas anuais. Tudo com aval do Congresso Nacional.
O argumento das "pedaladas fiscais" é ainda mais frágil. Renomados juristas e técnicos experientes refutam a tese de "operação de crédito" na relação entre o governo e o Banco do Brasil para execução do Plano Safra. Entendem, sim, que houve um mero contrato de prestação de serviços, em que um atraso de pagamento não configuraria "empréstimo". Fosse assim, poderíamos dizer que um trabalhador empresta dinheiro à empresa quando esta atrasa seu salário, o que é absurdo.
Vale lembrar que o Tribunal de Contas da União sempre permitiu tais mecanismos nos governos de Fernando Henrique e de Lula e jamais reprovou as contas dos ex-presidentes. Pelo contrário, o TCU também solicitou decretos de abertura de crédito suplementar para recompor seu próprio orçamento.
Nem mesmo o relatório da comissão especial da Câmara conseguiu demonstrar a má-fé ou a procedência das denúncias. Acusa sem provas e transfere a responsabilidade para o Senado, não sem antes pretender afastar a presidente do cargo. Pune-se primeiro para depois investigar.
De que ato ilegal da presidente se fala, então? Qual é a sua ação dolosa? Onde está a má-fé de Dilma se suas decisões foram amparadas em pareceres de órgãos técnicos que atestavam a sua legalidade?
Como haveria crime de responsabilidade se, depois que o TCU mudou seu entendimento, nenhum outro decreto foi expedido? Onde existe a ilicitude se alguns decretos visavam o pagamento de despesas obrigatórias, e outros foram baixados para atender decisões do próprio TCU? Onde está o "atentado à Constituição"? Não há.
Não existe dolo, má-fé ou ato ilícito que caracterize um "atentado à Constituição". Não acreditamos na consumação deste impeachment, pois ele desrespeita a Carta Magna e impõe uma ruptura com nosso Estado democrático de Direito.
Levar adiante esse processo é promover um golpe de Estado sem armas, fundado apenas em retórica jurídica incompreensível aos olhos da quase totalidade dos cidadãos. Se a Câmara respeitar a Constituição, não haverá impeachment.
JOSÉ EDUARDO CARDOZO, 56, é advogado-geral da União. Foi ministro da Justiça entre 2011 e 2016 (governo Dilma).(247).
Créditos: WSCOM
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