Programa do governo federal é de mercado, e não de habitação. Força desigual entre construtoras e prefeituras de cidades com poucos habitantes cria obstáculos e abre brechas para corrupção
O governo federal anunciou ontem (10) a aplicação do Programa Minha Casa, Minha Vida para municípios com menos de 50 mil habitantes. Para dar a partida nessa nova fase, estarão disponíveis R$ 4,7 bilhões para o custeio de 135 mil unidades habitacionais. Em resumo, qualquer cidade brasileira poderá contar com recursos federais para a habitação.
A notícia provavelmente soa otimista, principalmente para prefeitos e moradores desses municípios, que até agora não tinham acesso ao financiamento habitacional. Entretanto, acredito que seja oportuno rever alguns dos problemas do Minha Casa, sobre os quais já escrevi em outrasoportunidades. Esses problemas podem acabar prejudicando, mais do que ajudando, as cidades que recebem os recursos.
Em primeiro lugar, o Minha Casa é uma política de crédito, não uma política urbana. Há poucos instrumentos para o controle da qualidade e, principalmente, da localização dos empreendimentos. Como política de mercado que é, o MCMV é regulado, bem, pelo mercado. As construtoras vão atrás dos terrenos mais baratos que, salvo casos excepcionais, estão na periferia das cidades. Se nem grandes cidades como o Rio de Janeiro conseguem usar os mecanismos disponíveis na lei para melhorar a localização das unidades, municípios pequenos terão ainda menos poder.
Isso acontece porque, havendo recursos limitados, é fato que haverá competição entre as cidades, tanto pelo dinheiro federal como pela atenção das construtoras. Serão essas empresas que escolherão investir nas cidades que oferecerem as melhores condições para sua atuação. E, para elas, essas condições incluem terrenos distantes, para que sejam necessárias mais obras de infraestrutura, tais como ligação de água e esgoto, abertura de vias, construção de escolas e postos de saúde, entre outras. Não se trata aqui da conduta individual de cada empresa, mas da atuação conjunta do setor de construção civil, que tão bem soube articular seus interesses e levá-los ao governo na época da criação do Minha Casa, Minha Vida.
Outra questão difícil de controlar é o fornecimento, pelo município, de autorizações e licenças para as obras. Sem nem pensar na possibilidade de corrupção pura e simples, que, para ser justa, existe em qualquer programa em qualquer nível de governo, há o fato de que cidades pequenas têm pouco pessoal especializado para esse tipo de serviço. Já as construtoras, que possuem grande volume de recursos, podem se dedicar a produzir materiais para "convencer" a administração pública de que as regras estão sendo seguidas. A fiscalização em pequenas cidades também pode ser um problema.
Apesar de todas essas críticas, não acredito que o MCMV seja completamente equivocado. Ele é um instrumento importante para o acesso à casa própria para pessoas de baixa renda. É verdade que não houve participação popular na sua construção, o que o fez um programa de um ator só. Mas, como já declarou o vereador por São Paulo e urbanista Nabil Bonduki, os municípios podem se beneficiar dele, desde que tenham capacidade de impor suas próprias regras. Infelizmente, a maioria não tem.
Dessa forma, acredito que o Planalto deveria aproveitar o clima de mudança trazido pelas manifestações de junho e convocar o Fórum Nacional de Reforma Urbana, as universidades e quem mais quiser participar para um ajuste. Quem luta diariamente por cidades melhores tem na ponta da língua sugestões para a melhoria do programa.
Um passo como esse, especialmente se for dado antes da corrida pelos recursos, ajudaria esses municípios a não receberem os vícios urbanísticos dos nossos grandes centros. Nunca é demais lembrar que o ambiente construído nas cidades dura décadas. O impacto de escolhas equivocadas pode atingir gerações. Como exemplo, podemos citar a expulsão dos negros para os morros do Rio de Janeiro, no início do século 20, que culminou a criação das favelas, uma realidade que perdura até hoje. Casos assim não faltam. As consequências sociais dessas escolhas são muito graves para serem deixadas à mercê do mercado apenas.
Rede Brasil Atual
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